É impossível falar em fenomenologia sem falar Maurice Merleau-Ponty. O filósofo francês é um dos principais defensores deste sistema filosófico que defende a percepção primária como fator essencial à existência humana. Ponty desenvolveu um belíssimo trabalho e foi bastante inspirado por outro importante nome da filosofia fenomenológica, o alemão Edmund Husserl.
Por muito tempo se acreditou que a percepção era algo que, ao invés de nos ajudar, na verdade atrapalhava o nosso processo cognitivo, ou seja, a formação da nossa bagagem de conhecimentos. Esta ideia se fortaleceu especialmente porque muitos filósofos acreditavam que a percepção, encabeçada por sentidos como: visão, tato e audição; poderia enganar e confundir o nosso entendimento sobre nós mesmos, o mundo e as pessoas à nossa volta.
Logo, não é por acaso que desde sempre nós somos quase que naturalmente instigados a usar mais os nossos conhecimentos, a nossa inteligência e a nossa razão para resolver nossos dilemas diários do que a nossa percepção das coisas propriamente dita. Do ponto de vista científico, então, apenas a lógica, as teorias e as fórmulas testadas e comprovadas é que são consideradas como elementos factíveis para alcançarmos o real entendimento das coisas.
Merleau-Ponty acreditava exatamente no contrário. Por isso, foi ele que, no final da primeira metade do século XX, passou a contestar esta visão de que o intelecto tinha que se sobrepor a percepção. Trouxe com ele os seguintes e importantes questionamentos – Qual é a relação entre alma e corpo, consciência e mundo e homem e natureza? O que nos impacta mais é a nossa sensibilidade, à forma como as coisas nos tocam ou as ideias e os pensamentos pré-elaborados sobre estas mesmas coisas?
Por recusar veementemente uma dissociação entre estes aspectos, entre alma e corpo, por exemplo, estas e tantas outras perguntas rondaram e inspiraram o seu trabalho por toda sua vida. Para trazer uma luz a esta questão, Ponty chega à conclusão de que a Percepção seja do ponto de vista psicológico, cultural ou biológico é, na verdade, o nosso primeiro contato com o mundo, conosco e com os outros. Isso quer dizer que esta conexão tem muito mais a ver com a nossa sensibilidade do que com a nossa intelectualidade, pois à nossa existência essencialmente transcende os conhecimentos teóricos.
O grande problema, como explica Merleau, é que por uma série de fatores nós fomos conduzidos a certo distanciamento da nossa percepção original, buscando sempre respostas práticas e lógicas para basear e justificar as nossas verdades. Por isso, a nossa sensibilidade acaba sendo preterida, colocada em último plano para que o pensamento lógico predomine sobre todas as demais instâncias. Contudo, para o filósofo é justamente esta sensibilidade que nos ajuda a formar este pensamento mais elaborado das coisas e a ter uma visão mais ampla da nossa realidade.
Assim, enquanto a ciência considerava a realidade apenas sob o ponto de vista dos objetos construídos por ela (objetivismo) e a filosofia reconhecia a realidade somente sob o ponto de vista do sujeito do conhecimento (subjetivismo), Ponty se contrapõe exatamente a este objetivismo científico e ao subjetivismo filosófico, defendendo a percepção como a nossa primeira ligação com o universo que habitamos. E aqui fica mais uma grande questão por ele observada – Até onde vai a nossa capacidade de perceber o mundo?
Para elucidar esta interrogação, Maurice Merleau-Ponty destaca que – “Nós somos uma consciência cognitiva pura. Nós somos uma consciência encarnada num corpo. O nosso corpo não é um objeto tal qual descrito pelas ciências, mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência.” Com certeza, isso é uma forma de conectar as partes ao todo.
O filósofo francês também explica que – “Nós não somos pensamento puro porque somos um corpo, mas não somos uma coisa porque nós somos uma consciência. Nós somos seres temporais. Nós nascemos e temos consciência do nosso nascimento e morte. Temos memória do passado e esperança do futuro. Somos seres que fazem a história e que sofrem os efeitos da história. Nós somos o tempo. O tempo existe porque nós existimos.”, afirma ele.
Para entendermos melhor isso, precisamos retornar ao nosso estágio inicial de percepção, aquela que é sempre incentivada a ser substituída pela cognição. Merleau- Ponty chama esta retomada às origens de Pré-reflexão, pois entende que tudo que somos e fazemos; tudo o que acontece conosco ou ao nosso redor, não é fruto 100% do nosso intelecto, mas sim, em grande parte, da nossa percepção das coisas que, por sua vez é o que nos dá o sentido original de existir.
Para fazer esta reaquisição da nossa capacidade perceptiva, Ponty sugere que a nossa sensibilidade seja privilegiada, ou seja, colocada em primeiro plano, especialmente quando comparada com a obrigação do conhecimento formado, intelectual e elaborado, pois a percepção representa a nossa essência primeira.
Para ele, aquilo que nos é dado diretamente, o que captamos sem interferências externas, por exemplo, seria a nossa verdade mais autêntica, pois esta visão tem uma relação mais direta com as nossas origens, com quem somos e menos com os conhecimentos intelectualizados, construídos através de ideias e pensamentos pré-formados.
A Percepção, reafirmo, é uma forma de sentir o mundo. Como tal deve sempre ser valorizada e priorizada em nossa relação com o universo, com as pessoas e também conosco para que possamos assim perceber todas as suas nuances. Portanto, somos seres espaciais, estamos em vários lugares, preenchendo os espaços. Ouvimos enquanto falamos e, por vezes, falamos enquanto ouvimos. Quando tocamos também somos tocados. Quando vemos, por vezes, também somos vistos. Nosso corpo é a nossa forma de ser no mundo. Por isso, buscar percebê-lo dentro deste processo que é o viver é essencial ao nosso autoconhecimento e ao entendimento daquilo que nos rodeia também!
A Conexão das Constelações com a Fenomenologia
Quando tratamos de Constelações, estamos falando de uma abordagem psicoterapêutica que busca trazer à tona as dinâmicas que ocorrem dentro de um determinado sistema. O objetivo, com isso, é identificar as fontes de desarmonia, os sentimentos e emoções que impactam diretamente nos comportamentos, crenças e tomadas de decisão da pessoa, reequilibrar esta energia e melhorar sistematicamente sua qualidade de vida.
Dentro deste contexto e, de acordo com o modelo fenomenológico, devemos buscar observar o mundo sob o viés da nossa percepção primária, ou seja, sem julgamentos ou baseados apenas na lógica do conhecimento intelectual racional. Esse olhar sem filtros ou convenções pré-estabelecidas nos apoia a perceber, por meio dos nossos sentidos (tato, olfato, visão, sensação, por exemplo) à nossa realidade não necessariamente como sendo uma verdade absoluta e inquestionável. Existem muitas coisas que vão além!
Um exemplo prático disso é que quando estamos realizando uma constelação. Os movimentos feitos pelos participantes são essencialmente realizados com base em suas sensações ao assumir cada um dos papéis e revelam a energia e a emoção por traz de cada ação. Portanto, negar isso seria negar também as informações que estas impressões e sentimentos trazem a cada pessoa e a oportunidade que temos de, ao saber de tudo isso, interpretá-las de modo mais assertivo e verdadeiro.
Esta capacidade de perceber as emoções, intenções e histórias é o que torna o processo de constelar possível, pois traz à tona os sentimentos de cada pessoa que compõe aquele sistema abordado, elucidando questões que, na maioria das vezes, não são conhecidas ao constelado, que não estão claras na superfície, mas que, mesmo assim, afetam sua vida de algum modo.
Neste sentido, segundo o biólogo inglês, Rupert Sheldrake, estas esferas de energia invisível são os chamados campos mórficos, que podem ser considerados os mecanismos pelos quais disseminamos ideias e comportamentos por meio do espaço e do tempo. É exatamente no campo fenomenológico que o campo mórfico acessa, por exemplo, as memórias familiares dos nossos ancestrais. Também é nele que podemos acessar e identificar as pessoas, os fatos e as circunstâncias que estão impactando negativamente a vida do constelado nos dias de hoje.
Muitas vezes, as respostas que o cliente busca para sanar suas dores, dificuldades e lacunas pessoais não estão necessariamente em seu momento atual, mas no entendimento dos acontecimentos do passado que levaram aquilo. Em se tratando de Constelação esta é uma afirmação que faz muito sentido, pois ao constelar descobrimos, por meio da percepção das interferências no campo mórfico, como as histórias dos antepassados estão conectadas as dos nossos clientes.
Esta energia presente e ao mesmo tempo oculta, reverberada através dos anos é realmente poderosa e, pode inclusive, trazer desarranjos importantes à vida de um parente hoje. Para ilustrar como isso acontece, Rupert dos dá o exemplo de um membro da família que foi excluído do seio familiar por alguma situação drástica ou traumática como, por exemplo: rejeição, prisão, morte precoce, assassinato ou mesmo suicídio.
Se não descoberto e eliminado, este campo mórfico marcado pela exclusão do familiar impactará nas próximas gerações, levando também ao afastamento inconsciente de outros membros da família e criando sempre algum tipo de desarmonia entre os parentes.
Logo, é fundamental que esta fonte de desequilíbrio energético seja identificada, curada e transcendida. Em outras palavras, isso quer dizer que apenas quando o parente excluído for reinserido no contexto familiar é que aquele ciclo de segregação e rejeição será quebrado definitivamente. Somente assim também que as próximas gerações poderão seguir a salvo das suas más influências.
Neste sentido, a abordagem da Constelação Familiar é uma ferramenta que pode ajudar a elucidar as questões pendentes e, a que o constelado possa, enfim, construir sua própria história. Reafirmo que para conquistar este estado desejado é preciso verdadeiramente identificar a ressonância de memórias inconscientes, aquelas energias passadas de geração em geração, que estão afetando negativamente a pessoa e buscar formas efetivas de transcendê-las.
Para isso, reconhecer e fazer uso do poder da percepção, da sensibilidade sobre a lógica, ou seja, do reconhecimento e entendimento das sensações e emoções que cada energia provoca nos indivíduos é essencial. Na prática é isso que leva a mudanças positivas no mindset e nos comportamentos da pessoa, bem como ao alcance de resultados extraordinários por meio das constelações.
Por fim, termino como mais uma poderosa reflexão de Maurice Merleau-Ponty e que diz – “Por meu campo perceptivo, com seus horizontes espaciais, estou presente em meu meio, coexistindo com todas as outras paisagens que se estendem além, e todas essas perspectivas formam juntas uma única onda temporal, um instante no mundo.”.
Aproveite seu momento: sinta, perceba, interaja e faça parte, pois o único tempo que temos é o aqui e agora. Como tal, devemos cuidar para que, ao sermos a memória do passado e a projeção do futuro, possamos nos perceber, perceber o outro e o mundo ao nosso redor, buscando sempre ser o melhor que podemos ser também em nosso tempo presente sem jamais deixar de lado a nossa sensibilidade para captar o mundo e fazer parte dele. Permita-se!
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