Texto por José Roberto Marques e Padre Jovandir Batista

Este é um tema bastante amplo, e a minha intenção de trazê-lo aqui é somente para ressaltar as diferenças entre religião e religiosidade. Acredito e prego que todo ser humano tem religiosidade, mas nem todo ser humano tem religião.  

A melhor forma de compreender o que é religiosidade é comparando-a com a religião. Na religiosidade, encontramos diversas manifestações de fé e uma série de ações que refletem valores éticos; essas manifestações e ações servem como uma espécie de avaliação moral da dedicação que aquela pessoa tem para com a religião. São atos de religiosidade a devoção, , crença, fervor, piedade, santidade, santimônia, retidão, zelo, pontualidade, fidelidade, probidade, escrúpulo, correção e rigor.

A religiosidade se conecta com a religião em muitas de suas características, contribuindo significativamente para o seu enriquecimento. Porém a religião se define claramente em buscar o credo num Deus definido, que se manifesta por meio da Palavra, se faz explicado por meio de uma doutrina e celebrado por meio de um rito. Perceba, então, que a religião tem uma estrutura bem definida e é regida por uma hierarquia de pessoas; no caso da religião católica: papa, bispo e padre. A religiosidade, por outro lado, é mais fluida e menos organizada.

Do texto bíblico de Mateus, transcrito a seguir, podemos fazer uma boa interpretação sobre o que é religiosidade e o que é religião. Vejamos:

Jesus foi à região de Cesareia de Filipe e ali perguntou aos discípulos:

“Quem é que as pessoas dizem ser o Filho do Homem?” Eles responderam:

“Alguns dizem que és João Batista; outros, Elias; outros ainda, Jeremia ou algum dos profetas”. E vós, retomou Jesus, “quem dizeis que eu sou?”Simão Pedro, respondeu: “Tu és o Messias, o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Jesus então declarou: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou, mas o meu Pai que está nos céu. Por isso,eu te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja e as forças da morte não poderão vencê-la. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,13-19).

Então, Jesus é referência de vida cristã, seja para quem se identifica na religiosidade, seja para quem se identifica na religião. A partir da pergunta de Jesus, “Quem é que as pessoas dizem ser o Filho do Homem?”, identificamos respostas rasas, sem maiores referências, muito na ordem  do achismo, e uma resposta, a de Pedro, forte, completa ao definir Jesus,

digna de elogios. Daí podemos constatar que as respostas rasas, voltadas para o achismo, estão na dimensão da religiosidade, originadas no que “dizem por aí”, comentários baseados no senso comum.

Mas Jesus quer uma resposta mais exata, mais fundamentada e, neste sentido, restringe o público e pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?”Podemos entender esse público restrito como sendo a religião. A religião nasce dos discípulos de Jesus, aqueles que beberam da sua doutrina. E é a partir desses discípulos, dessa doutrina, que surge a Igreja, tendo Pedro como primeiro guia.

Portanto, quem se contenta com uma vida baseada na religiosidade são os que se encontram fora da doutrina, não têm interesse em se aprofundar no conhecimento sobre quem é Jesus. São pessoas que se contentam com opiniões, intuições e muitas criatividades devocionais. Já quem pertence à religião são os que se encontram na doutrina e se aprofundam cada vez mais nela no sentido de ter clareza sobre quem é Jesus, o Jesus de Nazaré, o Jesus Cristo e daí tornam-se missionários do Reino dos Céus.

Como dizia um padre (Jaci Cogo) que muito contribuiu à minha formação religiosa, “todos vão para o céu da mesma forma”, isto é, pertencendo à religiosidade ou à religião, somos todos servidores do Reino de Deus e merecedores de sua graça. Contudo sempre incentivo as pessoas a se aprofundarem nos estudos de Cristo, dentro de uma perspectiva da religião, para estruturarem melhor as suas ideias, pertencerem a um grupo religioso; com isto, por meio da partilha, terão mais clareza nas suas ações e propósitos. Aconselho que busquem ter medalhas de ouro na olimpíada de Deus.

Assim, tanto pela religiosidade quanto pela religião, Deus tem diferentes maneiras de se comunicar com o ser humano; e, a partir dessas comunicações, surgem os diferentes grupos religiosos, cada um com uma maneira própria de expressar a sua crença, seus costumes e conduta.  

Todavia uma religião tem uma forma mais estruturada e pedagógica de levar o fiel a uma compreensão desse Deus, seus propósitos e amor.

Ao longo da história, o povo já associou Deus a nuvem, rocha, escudo, tudo na dimensão da bênção e proteção. Muitos dos fenômenos da natureza eram entendidos como um tipo de manifestação de Deus: trovões, raios, tempestades, vulcões etc; muitas fantasias, assim, alimentando diferentes tipos de crenças. A tais interpretações, damos o nome de Teofania.

Segundo as Escrituras, para o povo não se perder em meio a tantas crenças, a tantas interpretações sobre quem é Deus, foi eleito o Povo de Israel como referência de caminhada religiosa para todos os demais povos. Daí se estruturou, da religiosidade, a religião: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Abraão reuniu, Moisés conduziu e Davi governou. De Maria e José, o Jesus de Nazaré. De Jesus de Nazaré, o Cristo Salvador. Do

Cristo Salvador, o Espírito Santo. No Espírito Santo, apóstolos deram o testemunho da Palavra. A Palavra se estruturou, e dela nasceu a Igreja. A partir da Igreja, com os padres (Patrística) e doutores, a doutrina se consolidou tal como a conhecemos hoje. E a nossa identidade ante a tudo isso se faz no Deus Trino: Pai, Filho e Espírito Santo.

Na religiosidade popular, o que mais se percebe são as festas: Folia de Reis, Folia dos Devotos e do Divino, Festa Junina; São João, São Pedro e São Paulo. E as festas marianas com os muitos títulos: Aparecida, Fátima, Lourdes, Auxiliadora, Educadora, Comunicadora etc.

A religiosidade faz muito bem às pessoas, sobretudo às mais simples, que nem sempre encontram espaço na Igreja a partir da doutrina religiosa. Os integrantes dos diferentes grupos da religiosidade popular prestam um excelente trabalho missionário visitando famílias, oferecendo conforto, orações e reforçando a fé dos mais simples, também promovendo ações sociais, como recebendo doações em mantimentos e dinheiro e os repassando para os mais necessitados.

Embora nem sempre participem da doutrina religiosa, os integrantes da religiosidade popular têm muito respeito para com a religião e,   geralmente, até afirmam ter uma. E, neste sentido, cabe aos líderes religiosos acolherem de forma sensata as manifestações da religiosidade popular. Na medida do possível, encontrarem momentos em que a doutrina possa estar presente nela, pois há, sim, muito de doutrina na religiosidade, porém desconexa, e o sacerdote pode contribuir com a organização desses ritos, sem descaracterizá-los.

Somar é sempre bom, é sensato da parte dos líderes religiosos. O Papa Francisco tem chamado os cristãos à atenção para uma “Igreja em saída”: “sair com e junto a”. Ir ao encontro das manifestações da religiosidade é ter a certeza de chegar às mais diversas realidades da sociedade.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sabiamente, disponibilizou o Documento nº 100, “Paróquia, Comunidade de Comunidades”, reconhecendo os diferentes grupos existentes numa paróquia como comunidade de fé. Neste sentido, independentemente de como as pessoas vivenciam sua fé, elas formam comunidades que alimentam toda a Igreja.

Termino contando a minha experiência como pároco à frente da Paróquia Nosso Senhor do Bonfim, na cidade de Silvânia, em Goiás. Naquela paróquia, são muito fortes as folias, há vários grupos de foliões, e há folia durante o ano todo. Eu conheci a folia dentro da casa dos meus pais; meu pai sempre fez questão de dar o “pouso de folia”. Um folião ali, o Sr. Ciary, contava todos os anos com esse pouso. Daí, ouvindo meu pai, observando e ajudando nos preparativos, recebendo a folia, observando as cantorias e orações, pude aprender muito sobre Deus do ponto de vista da religiosidade popular. Quando me tornei seminarista, durante os estudos de Filosofia e Teologia, eu continuava passando os meses de janeiro na casa dos meus pais e participando da folia. Mas, agora, observava a festa do ponto de vista da religião.

Meu pai sempre dizia que é “custoso” agradar os foliões, mas, quando são agradados, eles nos têm como grandes amigos. Mais tarde, como   pároco, aprendi muito sobre folia, com um folião que também tinha boa vivência na comunidade de fé, o Sr. Abel, popularmente conhecido como Abelinho. Com o Sr. Abelinho, pude conversar bastante sobre as minhas

experiências nas folias do Sr. Ciary, sobre os diálogos com meu pai e sobre as minhas interpretações sobre tudo. Com muito do que eu falei, o Sr. Abelino concordava; e muito do que eu ainda não compreendia, o Sr. Abelinho me explicava. Mais um ajuste aqui e ali na compreensão, estava eu com uma grata satisfação por tudo que aprendera e compreendera sobre religiosidade a partir dos foliões. Ficou claro o que era Folia de Reis, dos Devotos e do Divino.

O Sr. Abelinho e eu organizamos uma grande folia, a de São João, classificada como Folia dos Devotos. Dali, juntamente com a Secretaria de Cultura e Educação, o apoio das comunidades da paróquia e o empenho dos jovens, organizamos e resgatamos a Festa do Divino, tendo a grande contribuição dos foliões com a Folia do Divino. E, no ano seguinte, organizamos a Semana Missionária, dentro da Semana da Epifania (luz), com a Folia de Reis. Nesta folia, jovens e foliões percorreram todas as comunidades da paróquia durante cinco dias, com visitas, missa e pouso. Foram em torno de 500 as famílias visitadas e umas 1.500 pessoas contatadas.

Com a Folia de Reis, a Folia dos Devotos e a Folia do Divino, conseguimos valorizar a devoção popular dentro da estrutura da paróquia, também favorecer, com uma boa contribuição doutrinária, os foliões, os jovens e as comunidades de fé. Gratidão à Secretaria de Cultura e Educação da Prefeitura Municipal de Silvânia, que nunca mediu esforços para tudo isto vir a se tornar realidade.

Que perdure a religiosidade.  

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