O grande filósofo, Martin Buber, nasceu em Viena, na Áustria, em fevereiro de 1878. Graças à sua família, viveu tanto sob os princípios do judaísmo tradicionalista, como do Haskalá, movimento com influência iluminista, considerado uma forma moderna de ver a religião, mas que ainda assim valoriza suas origens e história seculares. Quando jovem, mudou-se para Alemanha para continuar seus estudos no país, local que seria decisivo tanto em sua carreira como em sua vida pessoal.
Formado em filosofia, psiquiatria e sociologia, Buber tornou-se notório em sua época graça aos seus estudos e publicações filosóficas. Defendia que não há como o homem existir sem o diálogo e a comunicação e que ambos não são possíveis sem que haja uma interação entre as pessoas. De fato, ninguém consegue se comunicar sem um interlocutor, uma vez que a comunicação é sempre direcionada a algo ou alguém e, para ter e ganhar sentido, precisa ser decodificada e entendida pelo outro.
Foi ai que nasceu a chamada filosofia do diálogo, representadas por duas dimensões distintas e complementares e que são respectivamente: Eu-Tu (relação), Eu-Isso (experiência), palavras-princípio, e que segundo Buber seriam as bases da nossa existência humana. Estes conceitos sobre a relação dos homens com os homens e dos homens com as coisas, foram apresentados, por ele, pela primeira vez em 1923, num ensaio que ficou bastante conhecido e que foi intitulado: Ich Und Du, ou na tradução, Eu e Tu.
O Eu- Tu e o Eu-Isso e a Intersubjetividade
Para Martin Buber, um relacionamento é constituído por dois seres que se comunicam e dialogam entre si, ao que também chamou de intersubjetividade. Neste sentido existe o Eu-Tu, que é formado pelo sujeito-sujeito, sendo que o “Tu” representa o mundo de cada sujeito. Já na relação do sujeito-objeto, o “Isso”, representa o universo do objeto. Por isso mesmo, o Eu-Tu é considerado mais integral e completo, pois representa o relacionamento entre dois seres com o todo um do outro, de forma ampla e plena, ou seja, com seus pensamentos, sensações e sentimentos, por exemplo. Por outro lado, o Eu-Isso se configura como a relação entre o ser com apenas uma parte do todo do outro, num movimento mais distante e impessoal.
Em resumo, podemos dizer que o Eu-Tu é o ser inteiro e o Eu- Isso o não inteiro. Para Buber, é exatamente esta integralidade que torna o ser humano completo. Em outras palavras, quando o melhor que habita em mim encontra o melhor que habita em você, criamos uma relação onde a nossa mentalidade e emoções estão alinhadas e ambas caminham na mesma direção. Para isso, é necessário que haja um diálogo, ou seja, uma interação direta entre as pessoas, de modo que uma integre a realidade da outra de forma ativa. Do contrário, se torna uma relação pautada pelo Eu- Isso, ou seja, pelo distanciamento.
Quer um exemplo? Pois bem, imagine que o carteiro passa todos os dias, no mesmo horário da tarde, em sua casa para entregar as correspondências e que, ao invés de atendê-lo, você sempre apenas espera que ele coloque as cartas na caixinha e vá embora, sem trocar nenhuma palavrinha. Esta relação, segundo Buber, é considerada Eu-Isso, pois embora você saiba que a pessoa está ali e que ela exista; você não se relaciona diretamente com ela, pois não há interação.
Agora imagine que todos os dias você recebe seu carteiro com um caloroso cumprimento de “boa tarde”, lhe chama pelo seu nome, oferece uma água ou café e tem alguns minutinhos de conversa. Ao eliminar este distanciamento e criar conexão, você experienciou um momento Eu- Tu, ou seja, um diálogo verdadeiro entre dois seres. Na prática, isso quer dizer que nesta situação, o carteiro assumiu novamente a posição de “sujeito” e deixou seu papel de “objeto”.
De acordo com a filosofia dialógica de Martin Buber, nascemos com a habilidade de nos relacionarmos com os nossos semelhantes. É exatamente esta intersubjetividade que nos permite acessar o outro e que ele nos acesse também. Isso também é o que nos ajuda a criar uma conexão e um vínculo maior. Esse Eu-Tu e Tu-Eu é representado pela forma como olhamos o outro, como o outro nos vê e como nos reconhecemos mutuamente. Para isso, existem três elementos considerados essenciais e que são respectivamente: o diálogo, o encontro e a responsabilidade.
Eu-Tu e a Constelação Sistêmica
A Constelação Sistêmica é uma metodologia que usamos para identificar os diferentes movimentos que ocorrem dentro de um determinado sistema. Já o sistema é considerado tudo aquilo que é formado por pessoas que se influenciam direta e mutuamente. Quando falamos do Eu-Tu neste contexto, observamos a importância de considerarmos a necessidade que nós, seres humanos, temos de nos conectarmos ao outro e de criarmos os nossos próprios vínculos.
É através do tu (do outro) que o nosso “eu” se acha e se descobre, afinal somos seres em construção e “incompletos”. E exatamente por estarmos em contato com outras pessoas nas mesmas condições que a jornada se torna menos estressante e mais equilibrada. Também é neste encontro do Eu-Tu e do Tu-Eu, que podemos demonstrar quem somos; compartilhar nossas crenças e mapas de mundo, ouvir o outro, trocar informações e experiências, expressar nossa identidade, aprender mais sobre ele e buscar nosso espaço no mundo.
Este diálogo é essencial ao desenvolvimento mútuo dos seres humanos, uma vez que para haver uma conexão verdadeira entre duas pessoas, além da comunicação verbal, também podemos nos expressar por meio das nossas emoções, visões, valores, energias, gestos, expressões físicas e olhares, por exemplo.
Quando conseguimos acessar verdadeiramente o Eu do outro e nos permitimos por ele sermos acessados também, criamos uma conexão poderosa, onde mesmo sem dizer uma palavra, conseguimos entender e sermos entendidos. Este interesse genuíno de saber mais sobre o mundo, um do outro, é essencial para que duas pessoas consigam se relacionar e entrar em contato com a essência de cada uma. Portanto, quando ambos caminham na mesma direção e há uma sinergia afetiva e ideológica, podemos dizer que os indivíduos acabam contribuindo mutuamente para o desenvolvimento e crescimento um do outro.
Ainda assim pode haver situações onde, embora, haja um desejo de contribuição mútua, uma das partes ainda não está suficientemente preparada para acessar à outra ou ser acessada, tornando assim a conexão incompleta. Isso pode acontecer quando o laço de confiança não foi totalmente estabelecido e a pessoa não se sente confortável o suficiente para se entregar a este processo de troca. Quando isso acontece é sempre muito importante respeitar os limites de cada um.
Buber chamou isso de Eu-Isso com um Eu-Tu subentendido, ou seja, há uma predisposição em se relacionar, mas que não foi concretizada ainda. Na relação entre terapeuta e cliente tudo isso precisa ser levado em conta e analisado, uma vez que os limites do paciente precisam sempre ser respeitados. Digo isso porque muitas vezes, a pessoa não está ainda preparada emocionalmente para avançar em determinada direção e acaba bloqueando seu processo por conta disso.
É importante lembrar de que o atendido também é responsável por tudo que acontece na sessão e ninguém melhor do que ele sabe o que funciona ou não para si. Portanto, como terapeutas temos que, a todo o momento, tomar o cuidado de não acharmos que nossos métodos e ferramentas são infalíveis. Para isso, devemos reconhecer o processo de autorregulação que cada pessoa tem e estarmos sempre atentos aos sinais dos nossos clientes, ou seja, a como eles respondem aos nossos estímulos e técnicas. Logo, para que se crie um vínculo de confiança é importante que a relação seja pautada no Eu-Tu e não no Eu-Isso. A intenção é que assim a pessoa seja mais ativa dentro de seu sistema de desenvolvimento e se responsabilize por ele.
Gestalt – Terapia – Relação Terapeuta e Cliente com a Teoria de Buber
Também conhecida como a “terapia do contato”, a Gestalt-terapia é uma abordagem psicoterapêutica criada em 1950, pelo psiquiatra e psicoterapeuta alemão, Fritz Perls. Segundo Ribeiro (1995), “é uma proposta humanística de ver o homem em toda a sua plenitude, em pleno desenvolvimento de suas potencialidades”. Seus preceitos casam perfeitamente com a teoria de Buber. Na prática, além da consciência, é um processo que convida a pessoa a perceber e se conectar como seus sentimentos, sensações e emoções para, deste modo descortinar a sua realidade e facilitar sua interação consigo mesmo e com o ambiente onde vive.
Neste contexto, o terapeuta atua tanto oferecendo uma espécie de tela de projeção, onde o paciente consegue visualizar seu potencial infinito e reconhecer, aqui e agora, os comportamentos e crenças que o tornaram limitado, como lhe auxiliando a verdadeiramente encontrar o caminho para vencer suas dificuldades e ir além no tempo presente também. Segundo Yontef, nesta relação dialógica entre terapeuta-paciente é importante levar em consideração cinco elementos essenciais, que são:
Inclusão – o terapeuta deve aceitar o cliente como ele é e fazer parte do seu universo. Para isso, é importante que o profissional conheça o mundo do seu paciente, esteja a par do seu mindset, honre e respeite a sua história e que, ao acessá-lo, deixe de fora suas visões e crenças pessoais.
Presença – consiste em mostrar-se verdadeiramente de forma honesta para o paciente, como você é e sem máscaras; e estar realmente presente em seu processo. Pode ser que nestes momentos você revele seus medos, angústias, raivas e questionamentos, o essencial é que seu eu real esteja manifestado.
Compromisso com o Diálogo – estar comprometido com o diálogo representa tanto entrar no mundo do paciente como deixar que ele adentre o seu. Com isso, esta relação se torna mais verdadeira para ambos, uma vez que a possibilidade de ser incluído e de estar presente na realidade do outro, faz com que haja uma abertura maior para que se conectem ao mundo interior um do outro. Para que este movimento gere um vínculo de confiança é necessário crer em sua capacidade e na habilidade do outro de se autorregular por meio da autodeterminação.
Não-exploração – neste modelo de terapia, o profissional deve entender cada pessoa como o objetivo final do seu próprio processo e que cada um é o responsável por si mesmo. Esta relação terapeuta-paciente deve ser marcada sempre pelo diálogo e pelo bom relacionamento entre ambas as partes. Para isso, o profissional deve ter uma visão sistêmica sobre seu atendido e sempre auxiliar o seu cliente a vivenciar sua experiência de autodescoberta, cura e transformação.
Vivendo o Relacionamento – a terapia da “arte de viver” requer que tanto terapeuta como paciente esteja, de fato, vivendo seu aqui e agora e comprometidos em descobrir como melhorar a qualidade de vida do paciente. O método se concentra menos em questões filosóficas e mais em questões práticas, ou seja, em como encontrar formas positivas de superar os conflitos e viver a vida, no presente.
Vale também destacar aqui sobre a importância de não misturar a relação profissional e pessoal. É fundamental respeitar determinados limites éticos e físicos e, com isso evitar envolvimentos de natureza íntima. Este profissionalismo ajuda a evitar que o processo do cliente seja comprometido. Também colabora para manter o distanciamento necessário a que a terapia possa ser realizada com sucesso.
Por fim, acredito na frase de Martin Buber que diz que – toda verdadeira vida é encontro. Permita-se, então, enquanto terapeuta e ser humano criar mais relações Eu-Tu e menos Eu-Isso, encontrar e se conectar de forma mais verdadeira com seus pacientes e com as pessoas ao seu redor. Esta troca, e este diálogo é o que torna a vida mais interessante e que nos traz sempre algo novo a ser descoberto tanto sobre o outro, como sobre nós mesmos.
Lembre-se disso e busque construir do seu jeito e no seu tempo, que pode ser aqui e agora, relacionamentos mais profundos e menos superficiais, para que assim você se sinta também mais conectado com o universo e com as suas infinitas e poderosas possibilidades. Permita-se, seja e dê o seu melhor sempre!
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